sexta-feira, 17 de julho de 2009

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Diretamente de COMENTÁRIOS ABERTOS...

A Gorda

Como quem descascava uma mexerica, a gorda procurava amor. Pedacinho por pedacinho da casca rasgada e arrancada, a acidez sentida por debaixo das unhas, a avidez de engolir os gomos. A gorda era gorda de tanto amor que tinha para dar.

Se apaixonava, vez em quando. Por alguém acessível, ninguém que fosse fora de seu alcance (não há limites pra sonhar? experimente ser gorda e sonhar com um namorado lindo como o da sua amiga magra). É como se as pessoas se separassem em camadas de beleza, tolerando pessoas de nível semelhante, ignorando os intocáveis feios e fingindo não sonhar possuir alguém superior.

Sem hipocrisia, sem essa de todos somos iguais. Alguém mais feio que você tem chance contigo? Honestamente? Sem ter muitos dígitos na conta bancária? E esse era o problema da gorda, ela não sabia fingir. Não sabia fingir que não queria aquelas pessoas tão inalcançáveis, as bonitas. Não ousava quebrar as regras, ela não interagia com os mais bonitos - eles a excluiriam. Até as amigas, as amigas eram todas tão feias quanto. A diferença da gorda para com as amigas - algumas também gordas - era que ela não aceitava a própria camada.

Os bonitos são os magros, não são? Ela não era magra. Os bonitos são os magros, não são? As amigas tinham namorados feios. A gorda não queria um namorado feio. Qual o sentido de namorar se não o de contemplar uma beleza, mesmo que só você a veja, na outra pessoa? E a gorda, azarada. só via a beleza no que todos concordavam ser belo.

Na casa da gorda, dois cachorros. Um era de raça, um amor. Brincava, corria, uma simpatia, não havia quem não gostasse. O outro, vira-lata, fora socorrido pela família depois de ser atropelado e que, por esquecimento, acabou ficando ali mesmo. Um poço de carência, o vira-lata. Chorava alto, pulava em qualquer um que chegasse perto, implorava atenção.

A gorda amava o de raça sinceramente, porque este se fizera amar. O vira-lata era desprezado pela família inteira, mas a gorda também o amava. Por obrigação. Os olhos pedintes do vira-lata refletiam o olhar desesperado por amor da gorda. Era uma corda-bamba, porque se identificar com um vira-lata carente não é tão gostoso assim: ela odiava o vira-lata, quando esquecia que devia amá-lo. Cachorro mais insolente, chato, pidão.

Tinha um amor que amava há algum tempo, porque de vez em quando a gorda via beleza em alguém do seu mesmo nível, sem perceber que caía na armadilha em que suas amigas já haviam caído. Só um. Ele era magro, e ela amava isso a respeito dele. Tinha um corpo quase bonito, uma postura quase elegante. O rosto era um desastre, mas até que os dentões tinham seu charme.

Conheceram-se num ônibus, que ela pegou pra ver uma tia no interior. Os dois sentaram lado a lado e ele ousou puxar papo. Pouco depois, consumida por desejo e vontade de transigir, ela se entregou pela primeira vez ali mesmo, o banco de ônibus testemunha de umas poucas gotas de sangue e alguns gemidos abafados.

Trocaram telefones, mas nunca voltaram a se encontrar. Conversavam longamente ao telefone, fantasiando um reencontro. Combinaram casar. Combinaram que começariam uma vida juntos, e ela levaria o vira-lata (até os vira-latas merecem um dia de protagonista). Com o tempo as ligações foram ficando esparsas, e eles se perderam numa curva que a vida deu. Coincidências não resistem ao destino.

Mesmo muito depois, ela se lembrava. Ela não foi ignorada. Ela não foi sempre só a gorda. Ela foi amada. (Se ele realmente a amou, não importa. Talvez tenha amado. De qualquer forma, a gorda acreditava sinceramente nas memórias).

Quando, depois disso, recebia uma proposta amorosa de alguém, a resposta padrão era não. O amor - que ela já tinha experenciado, pensava - aparece, ele não precisa de propostas. Ah, e quando ele aparece são horas no telefone contando todos os defeitos que tem, pra que o outro diga "Você não é assim" e você sobe às nuvens, estufado pelas ilusões macias que ouviu. O outro, coitado, pensa que você é perfeito. Você, esperto, sabe que o outro é perfeito, e de todas as formas tenta evitar que ele descubra suas verdadeiras imperfeições.

Foi visitar a tia novamente, muitos anos depois. A tia não tinha importância na sua vida, era só uma tia, e a gorda não se importaria se ela fosse só mais uma tia no porta-retratos da estante. Era a viagem que tinha valor, as horas no ônibus lembrando da sensação de roçar silenciosamente no banco suado, a vez que fora amada. A única vez.

Na casa da tia, abriu um jornal esperando que o dia passasse rápido, para entrar no ônibus novamente. Na coluna social, o garoto do ônibus casando com uma outra mulher. Ainda mais gorda. A gorda se sentiu traída. "Tudo bem que eu não sou tudo isso, mas me trocar pela ainda mais gorda?". Era pior que traição, era trair e humilhar. Chorou no banheiro, enquanto passava grossas camadas de batom nos lábios gordos, tentando parecer revigorada. Ficou parecendo uma palhaça, os olhos vermelhos combinando com a boca. A palhaça mais triste que já fora vista.

Voltou para casa, com nojo do ônibus, um enjôo horrível que insistia em fazê-la suar no banco, lembrando-a mais ainda do dia em que fora usada (não, não fora amada, pensava ela, fora usava, roubada, profanada); Chegando, foi cumprimentada alegremente pelo cachorro de raça. A gorda se ajoelhou, olhou para os seus olhos orgulhosos de cão comprado, encheu-se de raiva e atacou o cachorro com um soco. Soco mesmo, desses dados em cara de gente. Com força, bem no focinho idiota do cachorro. Como era arrogante! Pois era só um cachorro, não devia ser arrogante.

Enquanto olhava o cachorro de raça tentar, perplexo, se reerguer, sentiu uma forte dor no braço. Era o vira-lata, com olhos de fúria que ela nunca tinha visto antes, defendendo o amigo. Puxou o braço, e o vira-lata parecia ter voltado ao normal, pidão e carente, como se nada tivesse acontecido. Abanava o rabo e chorava, o pênis exposto pelo cio.

A gorda cobre o braço como pode, algum sangue escorre. A mordida não fora tão profunda.

Puxou o vira-lata direto pelo pescoço, sem o levantar do chão, e o trouxe para dentro da casa. Era a primeira vez que entrava na casa, lugar antes reservado para as pessoas e cachorros de raça. Foram para o quarto. O cachorro assustado, tentava acompanhar a velocidade da dona, mas as patas não conseguiam direito e ele era arrastado.

Ela chorava. As lágrimas escorriam pelo canto dos olhos vermelhos inchados, lambiam suas bochechas vermelhas e gordas e morriam nos lábios, borrando o batom em sua boca vermelha e pintando de vermelho também seu queixo (o primeiro de seus vários queixos de gorda).

Lembrou dos doze anos de idade. Na escola, escutou sem querer um professor dizendo "Coitada dela, ela tem um rosto tão bonito, pena que é gorda". Nunca ouviu alguém falar "Coitada de fulana, tem um rosto tão bonito, pena que ela é magra demais". Gordas sempre tem o rosto bonito.

Arrancou as roupas do corpo e puxou o vira-lata para cima de si. O cachorro, instintivo, penetrou-a com força. Ela gritou de dor. Ela também não entendia. O cachorro assustado com a atenção inesperada e com o grito da dona, chorava. A gorda, sem condições de pensar, gemia. Sentia nas canelas gordas que quase não existiam (pareciam uma extensão das coxas, que só terminavam em pés enormes e roliços que lembravam patas de elefante) o peso das patas do cachorro, o pêlo sarnento dele se misturando com a pele dela.

O cachorro é o melhor amigo do homem, e ela estava confusa por misturar amor e amizade. Ele, chorão e carente. Ela, chorona e carente. Almas gêmeas. Pela segunda vez, a gorda foi amada. O amor de um cão é sempre fiel.
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